sexta-feira, 1 de outubro de 2010

FICHA LIMPA
Ademar Mendes Bezerra Magistrado e Professor da Centenária Faculdade de Direito da UFC.


Não é de agora que a nossa gente, seja a integrante das elites econômicas e intelectuais, seja da classe menos favorecida, brada nesta Terra que já se chamou de Veracruz e depois Santa Cruz, e finalmente Brasil, no sentido de reverenciar a res publica, tristemente desrespeitada, sobretudo, pelas classes Política e Econômica, salvante as honrosas exceções – e o que é pior, contando com a leniência dos Governos da União, dos Estados e dos Municípios, - e por que não dizer, frise-se, da nossa sofrida gente, que a bem da verdade não escolhe os melhores para representá-la, certamente em razão da pobreza, dada a alarmante concentração de renda, donde não raras vezes, a troca do voto, a maior de todas as armas, nos Países onde predomina a Democracia, por migalhas, pasmem: por uma dentadura, já que somos a Nação dos desdentados, por uma sandália, enfim, por uma bagatela qualquer.

Até bem pouco, aqueles que sonegavam impostos neste nosso País, afastavam eventual condenação, desde que recolhessem o tributo devido antes da prolação da sentença, mesmo sabendo que o não recolhimento deste, acabaria por implicar na falta de Hospitais, de Escolas, de saneamento, afinal, de tudo aquilo que proporcionaria o desenvolvimento, uma vez aplicada a verba pública em proveito da Sociedade, sem que se possa olvidar que o lema dos nossos empresários, não faz muito, era privatizar o lucro e socializar o prejuízo, como tivemos oportunidade de presenciar. Felizmente, essa prática está sendo paulatinamente afastada.

A propósito, o então Cardeal Joseph Ratzinger hoje Papa Bento XVI, proclamou que a sonegação dos impostos é uma falta grave, justamente pelo fato de impedir ou quando menos de dificultar a realização do bem comum, plenamente condizente com uma das normas do Catecismo Católico (2240): A submissão à autoridade e a co-responsabilidade pelo bem comum exigem moralmente o pagamento de impostos, o exercício do direito de voto, a defesa do país.
Tantos foram os desmandos com os dinheiros públicos, como por exemplo, o dos Anões do Orçamento, Mensalão, propinas, desvio até mesmo da merenda escolar, um verdadeiro rosário de corrupção, quer no tocante às licitações, quanto nas construções das estradas, e tantas outras ilicitudes, que no imaginário popular surgiu a máxima, segundo a qual, no Brasil, “quem rouba pouco é ladrão, quem rouba muito é barão. Para essas pessoas, o político que não tira proveito da situação, vale dizer que não se aproveita do Erário, é um “otário”, especialmente porque para elas a coisa pública é uma res nullius, isto é, uma coisa de ninguém.
O que ocorreu recentemente no Governo do Distrito Federal, envolvendo também a Câmara Distrital, estarreceu o País – estando os seus autores, lastimavelmente soltos, a demonstrar a correção do pensamento de Rui Barbosa, quando da Oração aos Moços, ao ensejo da saudação por ele feita em espírito perante a Turma de 1920, proferida em 1921, (seis anos antes do Centenário de Criação dos Cursos Jurídicos no Brasil), na Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, do qual extraí algumas linhas, onde o insigne político, orador, constitucionalista, jurisconsulto e grande advogado, traça um perfil das leis e da política brasileira:

“Ora, senhores bacharelandos, pesai bem que vos ides consagrar à lei, num país onde a lei absolutamente não exprime o consentimento da maioria, onde são as minorias, as oligarquias mais acanhadas, mais impopulares e menos respeitáveis, as que põem, e dispõem, as que mandam, e desmandam em tudo; a saber: num país, onde, verdadeiramente, não há lei, não há moral, política ou juridicamente falando.
Considerai, pois, nas dificuldades, em que se vão enlear os que professam a missão de sustentáculos e auxiliares da lei, seus mestres executores. É verdade que a execução corrige, ou atenua, muitas vezes, a legislação de má nota. Mas, no Brasil, a lei se deslegitima, anula e torna inexistente, não só pela bastardia da origem, senão ainda pelos horrores da aplicação.”

O recebimento de percentuais quando das desapropriações, da aprovação de licitações, da consecução de verbas orçamentárias, contratações sem observância das formalidades legais, inclusive no que concerne às contas dos Prefeitos, pelos que integram as Câmaras Municipais, com as exceções de sempre, grassa em todo o País, até nos Estados do Sul e Sudeste, sendo bastante aquele caso envolvendo o então Prefeito de Juiz de Fora, não sendo surpresa para ninguém o que aconteceu na Diretoria do Senado, amplamente divulgado pela Mídia, com distribuição de cargos, de gratificações, passagens e outras benesses, tudo ao arrepio da lei.

Inúmeras tentativas, diga-se a bem da verdade, foram feitas com o propósito de se excluir da Administração Pública, os malversadores dos dinheiros públicos, mesmo antes da promulgação da Constituição de 5 de outubro de 1988, conhecida pela antonomásia que lhe emprestou o saudoso Deputado Ulisses Guimarães, de “Constituição Cidadã”

Com efeito, o Decreto-Lei n.º 201, de 27 de fevereiro de 1967, já proclamava no seu art. 1º, uma série de situações caracterizadoras de crime de responsabilidade dos Prefeitos Municipais, não se podendo esquecer também, o disposto no art. 312 do Código Penal :

“Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.”

A Constituição da República Federativa do Brasil no art. 37 patenteia em alto e bom som, para toda a Administração Pública, a obediência aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Uma decorrência natural do supracitado dispositivo constitucional, foi a promulgação da Lei n.º 8.429, de 2 de junho de 1992, sendo suficiente para sinalizar a preocupação do constituinte derivado para com a coisa pública, a transcrição da ementa e das cabeças dos artigos, 1º, 9º, 10º, 11º e 12º, da Lei de Improbidade Administrativa:
Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências.
“Art. 1° Os atos de improbidade praticados por qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual, serão punidos na forma desta lei.

Art. 9° Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° desta lei, e notadamente:

Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:
Dos Atos de Improbidade Administrativa que Atentam Contra os Princípios da Administração Pública
Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:
Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato: (Redação dada pela Lei nº 12.120, de 2009).”

Já em 1990, com a edição da Lei Complementar n.º 64, de 18 de maio, o Parlamento Brasileiro teve a intenção de coibir os desmandos relativamente ao emprego das verbas públicas e com a Administração em geral:

Art. 1º, inciso I, letra g, são inelegíveis:

“Os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se a questão houver sido ou estiver sendo submetida à apreciação do Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 5 (cinco) anos seguintes, contados a partir da data da decisão;”

Obviamente, diante dos inúmeros recursos postos à disposição dos distintos advogados, bem como da proverbial morosidade da Justiça Brasileira, justamente em face da enorme grade recursal, bem como de outras formas de defesa, o dispositivo em referência se tornou praticamente letra morta na nossa legislação, sem falar que a essa época, ainda que as contas dos Senhores Prefeitos fossem de governo ou de gestão, mesmo que consideradas irregulares por vícios insanáveis pelo Tribunal de Contas dos Municípios, ainda assim, dês que aprovadas pela Câmara, tinha o condão de afastar a inelegibilidade.

É verdade que alguns Tribunais Regionais, tentaram imprimir maior rigor, máxime em se tratando das contas de gestão, as quais embora aprovadas pela Câmara, - para o TRE de Santa Catarina não teria força para retirar a inelegibilidade, mesmo que o Erário fosse ressarcido do prejuízo. Tal esforço, no entanto, foi afastado pelo egrégio Tribunal Superior Eleitoral, em decisão recente, publicada na Revista de 12/2008:

“Registro. Recurso de candidatura. Impugnação. Tomada de contas Especial. Contas julgadas irregulares pelo Tribunal de Contas do Estado. Dano ao Erário. Decisão Irrecorrível. Inelegibilidade. Art. 1º, I, g, da Lei Complementar n.º 64/90. Provimento.
A decisão irrecorrível proferida pelo Tribunal de Contas do Estado que, por tomada de contas especial, julga irregulares as contas do prefeito municipal, em razão de conteúdo ilegítimo e insanável, autoriza a incidência da inelegibilidade prevista no art. 1º, I, g, da Lei Complementar n.º 64/90, ainda que coexista aprovação recomendada pela Câmara Municipal.
A condição de inelegibilidade prevalece, mesmo que se recomponha o Erário e proceda-se à quitação da multa imposta, nos autos da tomada de contas especial.”

Eis o conteúdo da ementa do acórdão do qual foi relator o eminente Ministro Arnaldo Versiani:
“Registro de candidatura. Inelegibilidade. Art. 1º, I, g, da Lei Complementar n.º 64/90. Competência.
A competência para o julgamento das contas do prefeito é da Câmara Municipal, cabendo ao Tribunal de Contas a emissão de parecer prévio, o que se aplica tanto às contas relativas ao exercício financeiro, prestadas anualmente pelo chefe do Poder Executivo, quanto às contas de gestão ou atinentes à função de ordenador de despesas.
Recurso especial provido.”

Diante de tamanhos abusos a Sociedade Brasileira, tendo à frente a Associação dos Magistrados Brasileiros, seguida por outras Associações e, obviamente pela Ordem dos Advogados do Brasil, quanto pelo Ministério Público, encetou o movimento cognominado de Ficha Limpa, com o intuito de afastar dos cargos eletivos aqueles que tiveram suas contas desaprovadas pelos órgãos competentes.

A luta encabeçada pela AMB, Associação dos Magistrados Brasileiros, foi incorporada também pelo colendo Tribunal Superior Eleitoral, à época dirigido pelo eminente Ministro Carlos Ayres Brito, Presidente, quanto pelo Vice, Ministro Joaquim Barbosa. Em vista deste benfazejo movimento, a Magistratura foi penalizada pelo Congresso, que levou bem mais de três anos para aprovar a sua recomposição salarial.

Graças a esses esforços, foi apresentado um Projeto de Iniciativa Popular perante o Congresso Nacional, que contou com mais de um milhão e quinhentas mil assinaturas, além do empenho da sociedade dita organizada, culminando com a promulgação da Lei Complementar n.º 135, de 4 de junho de 2010, que deu nova redação à alínea g, do inciso I, do art. 1º da LC n.º 64/90, o qual foi assim redigido:

“g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição;”

Antes mesmo do início do processo de registro das candidaturas para o pleito de 3 de outubro vindouro, a denominada Lei da Ficha Limpa, isto é, a Lei Complementar n.º 135, em vigor desde 4 de junho deste ano de 2010, começou a ser contestada quer pelos Advogados, como pelos seus constituintes, com pronunciamentos os mais diversos, relativamente à sua aplicação.

Para o comentarista político João Bosco Rabelo, em sua coluna publicada via Internet, direto de Brasília, “Sem prazo de julgamento pelo STF, Lei da Ficha Limpa pode produzir legião de eleitos sub judice. Consoante a mesma fonte, “A decisão sobre o mérito do projeto Ficha Limpa virou um impasse de prazo imprevisível. O Supremo Tribunal Federal (STF) tem examinado recursos específicos, concedendo uns, rejeitando outros. Mas uma decisão sobre o mérito – que divide o próprio tribunal – parece improvável antes das eleições”.

Para Rodrigo Lago e Israel Nonato, “A Ficha Limpa (LC 135/2010) deve ser interpretada conforme o artigo 16 da Constituição, que assegura ao cidadão – seja ele eleitor ou candidato – o direito ao devido processo eleitoral, isto é, o direito a um “processo eleitoral incólume, protegido contra fraudes e casuísmos, regido por um sistema de regras que concretize, na sua máxima efetividade, o direito fundamental ao voto” (ministro Gilmar Mendes, ADI 3.685, RTJ 199-3/999). Por ser uma lei que altera o processo eleitoral, a Ficha Limpa entra em vigor em 07/06/2010, não se aplicando, contudo, às eleições de 2010, pois tais eleições ocorrerão a menos de quatro meses da data da sua vigência.”

Rodrigo Haidar, por sua vez, observa: “As liminares que os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, deram na semana passada para garantir o registro de candidatura de políticos já condenados por órgãos colegiados da Justiça foram apenas o prenúncio de uma árdua batalha que a Lei Complementar 135/10, conhecida como Lei da Ficha Limpa, certamente enfrentará naquele tribunal.”
No artigo intitulado “Ficha Limpa valerá nas eleições de 2010, diz TSE “Os candidatos às eleições de 2010 devem respeitar uma nova regra: a Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/2010). Em vigor desde o dia 4 de junho, a nova lei prevê que candidatos que tiverem condenação criminal em segunda instância, ainda que caiba recurso, ficarão impedidos de obter o registro de candidatura, pois serão considerados inelegíveis. A nova lei, que também amplia prazos de inelegibilidade de três para oito anos, altera a Lei das Inelegibilidades (LC 64/1990). Nesta quinta-feira (10/6), os ministros do Tribunal Superior Eleitoral entenderam que o texto deve ser aplicado já nas eleições de outubro.” De conformidade com a mesma fonte, “O voto do relator, Ministro Hamilton Carvalhido, favorável a aplicação da lei, foi acompanhado pelos ministros Arnaldo Versiani, Cármen Lúcia, Aldir Passarinho Junior, Marcelo Ribeiro e o presidente, Ministro Ricardo Lewandowski”, divergindo o Ministro Marco Aurélio. Para a douta maioria, em virtude do período eleitoral nessa data não ter começado, “a mudança da regra não prejudica os possíveis concorrentes.”
De acordo com o noticiário do TSE, datado de 17 de agosto andante, o egrégio Tribunal Superior Eleitoral, vem de reafirmar, por cinco votos contra dois que a Lei da Ficha Limpa é aplicável às eleições de três de outubro vindouro, permitindo, assim, que os Tribunais Regionais Eleitorais de todas as Unidades sigam o exemplo da Corte Maior.
O Tribunal Regional Eleitoral do Ceará, por seus juízes, contando com a participação do ínclito Procurador Regional Eleitoral, em momento algum almejou perseguir quem quer que tenha procurado a obtenção do registro de sua candidatura, apenas cumpriu com o seu dever, qual o de afastar da pugna eleitoral os pretensos candidatos que não se adequaram às novas exigências instituídas pela Lei Complementar n.º 135, de 4 de junho de 2010, quer por não terem trazido a documentação exigida pela Legislação Eleitoral, quer por não conseguirem expurgar a desaprovação de suas contas junto ao TCM, dada a impossibilidade de afastamento das irregularidades insanáveis junto ao TRE.
Em harmonia com as decisões do TSE, não se tornou possível a admissão de liminares obtidas de última hora, junto às Varas da Fazenda Pública, as quais apenas não puderam, repita-se, por força de pronunciamentos da Corte Maior Eleitoral, ser chamadas à colação para afastar eventuais inelegibilidades, - sem que se possa olvidar que algumas decisões, se aplicadas às espécies em alusão, acabariam por revogar decisão de Ministro da Suprema Corte, o que, há de se convir, seria sem sombra de dúvidas uma absurdez inominável.
Quero terminar este artigo, alertando que a prevalecer o ponto de vista esposado por muitos advogados, e quiçá por Juízos monocráticos e coletivos, de nada terá valido o ingente esforço de nossa sociedade no sentido da aprovação da LC n.º 135. Se assim acontecer, não nos resta senão trazer à memória, a ira santa de Rui Barbosa:
“De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto. (Senado Federal, RJ. Obras Completas, Rui Barbosa. v. 41, t. 3, 1914, p. 86).”
Obs. Este artigo foi publicado na Revista Jurídica Leis&Letras - Ano IV - Nº 21 - 2010, pp. 52 a 57.









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